Trem. Olhos grudados em Capitães da Areia, de Jorge Amado. “Desembarque”. Celular. Distração. Abordagem. Coincidência literária. Menino pobre e mal vestido. Desconfiança e medo. Preconceito. “Não é para pedir dinheiro não, senhora”. Então penso: “se não é isso, o que mais poderia ser?”. Ignoro. Continuo a negar. Ele continua a insistir. Paro numa lanchonete. Procuro alguma desculpa para mim mesma para que eu possa evitá-lo e prevenir um possível assalto, segundo minha apreensão. Um homem pede que ele me deixe em paz. Ele foi. Eu fiquei, mas não em paz.Minha consciência começa a latejar. A curiosidade bate. A culpabilidade também: o que será que ele queria comigo? O que eu poderia fazer por ele? Ou será que era só mais um pivete malandro? Fiquei com essa questão num tempo considerável. Como sou preconceituosa. Como me tornaram assim...como me conformei ser assim. É certo que não precisamos ser hipócritas, temos de admitir que boa parte dos meninos de rua estão soltos por aí observando passantes que possam ser possíveis “clientes” seus, participantes de sua rotina de furtos e roubos. Mas também não precisamos generalizar e enquadrar todos os moradores de rua e pessoas que vivem na miséria como indivíduos desonestos e criminosos. Não tenho resposta para o acontecimento de hoje. Talvez seja esta a causa da minha culpa. Sentindo-me tão perto da crua realidade e ao mesmo tempo tão alheia a ela: tão ignorante quanto às mazelas que me cercam. Tão no meu mundo e na minha bolha, enquanto o mundo lá fora se desfaz, ou melhor,ele nunca foi feito ou moldado. Foi deixado de lado e por si próprio cresceu e se hipertrofiou, e nós, na nossa redoma, simplesmente nos tornamos indiferentes ao caos que se instalou (não desde agora, mas num processo antigo...). Contei a alguém o meu pesar. Escuto que sou muito ingênua e distraída. Eles são ágeis e mais espertos que eu. Tento esclarecer a minha linha de pensamento e o que recebo de resposta? Infelizmente a vida é assim”.